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A EFICIÊNCIA PSICOTERAPÊUTICA  E O RESGATE DA INTELIGÊNCIA

        O que fazer quando ir ao psicólogo parece já não dar mais resultado? Como avaliar se a psicoterapia está ou não me tornando uma pessoa melhor, mais equilibrada diante dos desafios da vida ou causando efeitos positivos? Como chegar a resolução de interromper o processo terapêutico ou procurar outro psicólogo? Tais perguntas compõe o repertório de dúvidas de qualquer pessoa que esteja passando por um processo psicoterapêutico e que, no mais das vezes, não consegue obter as respostas para as questões que a motivou a procurar a ajuda de um psicólogo.

        Não é raro, na modernidade, encontrar pessoas que vão ao psicólogo, ou que já se submeteram a alguma consulta com um profissional da área, sobretudo no círculo de pessoas mais ricas, porém mesquinhas, onde, segundo o meio, fazer terapia (comumente análise) é coisa de gente “chique”. Mas, por outro lado, do rico ao mendicante, é quase inevitável, na pobreza cultural (espiritual) em que o Brasil vem se afundando há mais ou menos um século, que alguém não se sinta atormentado por todo o tipo de demônio e procure desesperadamente uma pessoa que possa lhe ouvir com acolhimento, ajudar a resolver problemas, responder suas inquietações mais singulares, e mormente guiá-la pelos caminhos obscuros da vida. O problema que se instala diante de tal decadência – embora esteja falando de psicologia, mas que se esvai por outros campos, sobretudo no da Educação – é que na ausência do bom, qualquer coisa serve – fato este bem observado pelo psiquiatra britânico Anthony Daniels, mais conhecido pelo pseudônimo Theodore Darymple, cujo o tema da pobreza cultural que invadiu o Ocidente nos últimos séculos, e do qual este em que vivemos é apenas resultado, é desenvolvido de modo brilhante pelo autor no livro Qualquer coisa serve. Este lema se tornou o modus operandi de quase a totalidade das pessoas, um retrato da modernidade, invadindo também os consultórios de psicologia e psiquiatria, filhos legítimos das universidades e, portanto, da cultura impregnada de cacoetes ideológicos sem fim. O “qualquer coisa serve”, agora instalado em consultórios de psicologia e psiquiatria, torna-se, objetivamente, mais uma parcela do círculo da barbárie, da desumanização, que vai se fechando, quando o que se espera de tais profissionais é exatamente a atitude oposta à da ideologização, do controle abusivo, do coletivismo sem peias e da ignorância de marcas tão evidentes e essenciais da alma humana; mais uma pá de terra é lançada na sepultura da consciência, da individualidade e do aspecto mais revelador da identidade humana, a inteligência, que é a genetriz da personalidade.

        Um psicólogo não consegue elevar ninguém a cima de onde ele próprio está, seja no tocante à virtude, seja no nível intelectual, pedagógico, cultural, moral e mesmo no plano psicológico. Agostinho, de forma geral, o disse de outro modo: “ninguém dá aquilo que não tem”. Esta é uma premissa lógica que qualquer pessoa pode comprovar. E, no que tange a psicoterapia, seja ela decorrente do embasamento filosófico que for, tal impossibilidade não se trata apenas de uma impedimento formal, mas um impedimento intrínseco à própria estrutura da realidade. Em resumo, da mesma forma como não é possível que um professor ensine ao aluno um conteúdo que ele próprio não o possui, assim, guardada as proporções, nenhum psicólogo é capaz de elevar outra psique a cima de onde a sua própria está, uma vez que a psicoterapia só é possível a partir do encontro entre duas psiques. E, neste referido encontro, o terapeuta, diante do paciente, constitui uma figura de autoridade, seja ela qual for, pois, do contrário jamais o paciente o teria procurado. Há, desta maneira, já na tomada de decisão em procurar um psicólogo demasiada confiança de que tal ou qual profissional seja devidamente qualificado para atender a demanda de seus pacientes, frequentemente esperamos que este saiba algo que eu não sei e que por essa mesma razão, talvez, possa me oferecer ajuda efetiva. Isso é o que quero dizer quando falo de autoridade. O estereótipo acerca do psicólogo o coloca como conhecedor da psique humana, ou da alma humana – como quiser –, e isso, sem dúvida, faz dele uma autoridade frente aos pacientes, que geralmente se encontram em condições vulneráveis pela carga de sofrimento que os fazem procurar nossos consultórios. Podemos assinalar, deste modo, que quaisquer processos psicoterapêuticos que não têm por objetivo potencializar o indivíduo para a autonomia, e por assim dizer, para se desvincular do próprio processo psicoterapêutico, aos poucos, e por uma tomada de decisão autoconsciente, levando em conta a responsabilidade que dirigir a própria vida sem duas ou três sessões de psicoterapia durante a semana exige, constitui, sem dúvida, um abuso de autoridade, uma espécie de charlatanismo e vigarice profissional.

        Não é incomum encontrar pessoas que não conseguem se posicionar diante de seus terapeutas, justamente pela própria inibição que está implicada no fato de que ele é o terapeuta e você o paciente, de que ele sabe tudo sobre você e você não sabe nem uma parcela de como ele dirige a própria vida, e de que é você quem precisa dele e não o contrário. Mas tal argumento é, efusivamente, o motivo pelo qual os pacientes podem, senão devem, questionar seus respectivos terapeutas, analistas e psicólogos. Honestamente, não se coloca a própria vida na mão de outrem sem algum rigor ou sem estabelecer algum critério, embora reconheça que em determinadas situações a escolha mais vistosa seja a de que “qualquer coisa serve”… mas sei também que o “qualquer coisa” não serve por muito tempo, e que, no fim das contas, o barato pode sair muito caro.

        Uma sã psicoterapia, portanto, tem como objetivo primordial fortalecer a autonomia do indivíduo, o que resultará, dialeticamente, mais cedo ou mais tarde, no encerramento do processo terapêutico. A palavra autonomia tem origem no grego e é uma junção de duas palavras: αὐτο, que quer dizer “si mesmo”, e νόμος, que quer dizer “nomos”, isto é, “autônomos”, que significa “aquele que dirige a si mesmo”. É certo que a vida humana é uma constante imitação. Aprender, de certa forma, é imitar. Ensinar, não obstante, é mostrar o caminho, ou os caminhos. Antes de chegar à autonomia, antes de aprender a dirigir a própria vida, portanto, se faz necessário ser dirigido por alguém, ou aprender desse alguém como ele dirige a si próprio, e logo, guardada as proporções, imitá-lo. Isso é muito claro quando estudamos a história da filosofia. Na escola de Sócrates e dos antigos filósofos gregos, por exemplo, os alunos, antes mesmo de ingressar, passavam por um dos mais rigorosos exames para que pudessem apenas ver o professor. O filósofo neoplatônico, Jâmblico, diz que Pitágoras “não aceitava de imediato o ingresso na escola dos jovens que se aproximavam dela com essa intenção, mas só depois de os haver testado e haver chegado a uma conclusão sobre eles. Em primeiro lugar, perguntava-lhes de que modo se relacionavam com os pais e parentes; em seguida, observava se riam num momento impróprio, se eram muito silenciosos ou falavam em demasia. Além disso, indagava a respeito de suas aspirações, quem eram seus amigos e o que faziam quando estavam juntos; quais eram as principais atividades durante o dia e o que os deixava alegres ou tristes. Ele também observava a aparência, a postura e o movimento dos seus corpos, avaliando o caráter por meio de seus gestos, interpretando as características psíquicas invisíveis por  meio  de  seus  atributos  físicos. Quem quer que fosse testado dessa forma, fazia questão de observar durante  três anos, período em que verificava a firmeza de caráter e o amor que o jovem tinha pelo aprendizado. Ele também queria ver se, em sua opinião, o candidato estava suficientemente preparado para desprezar o sucesso mundano. Depois submetia-os a um silêncio de cinco anos com o propósito de observar seu autodomínio, pois considerava que o ato de permanecer em silêncio era o mais difícil nesta prática. Se eles fossem considerados dignos de compartilhar de suas idéias, avaliados segundo seu modo de viver e outras boas qualidades, eram facilmente admitidos no círculo interno, após os cinco anos de silêncio, e podiam ouvir e ver Pitágoras”.1 É notável neste exemplo que “qualquer coisa”, definidamente, não serve; que, o que muito vale, muito custa.

        Cumpre ressaltar também que sem uma autoconsciência de ambos, terapeuta e paciente, qualquer consulta ou sessão há de se transformar num puro e simples flatus vocis. A psicoterapia supõe a autoconsciência, ou não é PSICOterapia. A autoconsciência, metaforicamente, é o espelho da própria consciência, onde ela examina a si própria e se intensifica cada vez que assim o faz; é a arte de confessar para si mesmo tudo o que “passou pela sua própria consciência”. Sem este exercício a terapia se tornará “mais do mesmo”, algo sem sentido. Os que já se enveredaram pela psicoterapia, bem como os psicólogos genuínos, hão de reconhecer que, na maioria dos casos, o paciente está presente apenas fisicamente, mas psiquicamente  está fragmentado, disperso, alienado, alheio de si, consciente dos estímulos, mas inconsciente quanto a sua própria presença. Ter consciência, no sentido real do termo, nada mais é que estar autoconsciente, estar de todo presente, atuante, e não detectando estímulos visuais, auditivos, meramente. Estar autoconsciente é se perguntar ao passar porta a dentro do consultório “o que eu vim fazer aqui mesmo?!”, e responder a partir do cimo da alma, ou seja, levando em conta todo o peso existencial de estar adentrando um consultório de psicologia e indagar “por que raios na minha vida eu estou entrando neste lugar? O que eu quero vindo aqui?”. Habitualmente, a maioria das pessoas ignoram tais perguntas, justamente porque tentar respondê-las nos força a voltar à realidade; realidade esta que não contemos, que não controlamos, que não abarcamos completamente, e por estes mesmos motivos sofremos, porque – aceite ou não – há em nós uma tendência a cair o tempo todo, por um impulso psicológico difícil de se evitar, numa posição de autodefesa, de autopreservação, que é fruto das incertezas da vida e do medo, que acompanha a experiência humana desde o nascimento ao último suspiro, e que nos faz tremer diante do que nós ainda não compreendemos. Claro! É mais cômodo viver no mundo ideal (o da fantasia) porque dele eu sou o deus criador, “seguro, onipotente, forte e despreocupado”. Não que não se possa viver assim, ocupando a cátedra do egoísmo e da presunção, é uma possibilidade, é uma escolha, apaixonada, mas ainda uma escolha. Porém, o amor, a maturidade, a força, o desprendimento de si, a gratidão, a felicidade, são como flores, não brotam em terra artificial, e, correntemente, para que floresçam, elas precisam criar raízes por entre terras calcadas e escuras, terrenos secos, arenosos, e lutar, e insistir, buscar da água que tanto procuram; leva tempo, até que num dia de primavera desabrocham, e então transformam toda a paisagem. Na vida, o processo é semelhante. Cada vez que fujo dos meus terrenos pedregosos, dos lugares difíceis de lançar raiz terra a baixo, de me demorar no exercício de ali mesmo me nutrir, de superar, de crescer e florescer, fico alheio de mim, significa que passo a desvincular o mundo ideal do mundo real, ao invés de integrá-lo, abarcá-lo e transcendê-lo; vicio a inteligência para raciocinar não mais sobre os elementos da realidade que se apresentam imediatamente a minha frente, mas sobre os da idealidade, da minha fantasia mental (que é sempre uma visão míope e reducionista das coisas); isso, além de me transformar num completo imbecil, por ter enterrado minha própria consciência e capacidade de raciocínio no cemitério mais putrificado que existe, o da covardia, me tornará uma aberração sob aparência humana, que – nunca é demais recordar – é um dos objetivos principais dos pensadores revolucionários de linhagem marxista cujo os efeitos nefastos assolam nossa cultura.

        A resposta da questão “O que eu vim fazer aqui?”, que pode ser feita frente sua própria existência neste mundo, bem como para descobrir o que é que você busca indo ao psicólogo, quando obtida, tornar-se a resposta-chave para uma maior compreensão  de si, das coisas e da realidade; uma ampliação do horizonte de consciência. Ora, um psicólogo que se preze há de se questionar “o que faz este sujeito sair do trabalho e vim passar uma hora do seu dia sentado na minha frente?”. Esta é a lição que Sócrates mesmo nos ensina. Tratar de mim, das coisas, dos problemas, dos outros, sem que eu esteja autoconsciente da posição que eu ocupo frente às coisas; da minha parcela de responsabilidade moral ao fazer menção disto ou daquilo, é uma completa absurdidade. Sócrates, em seus diálogos, sempre evocava o testemunho do seu interlocutor e a parcela de responsabilidade moral que lhe cabia sobre o tema que estavam discutindo. O Filósofo nunca perdeu isso de vista. Neste sentido é que os diálogos socráticos eram no fundo um constante exercício da autoconsciência humana e, por isso mesmo, é que funcionavam. Não com menos justiça, pode-se dizer que Sócrates, em sua pedagogia, fundou um genuíno método psicoterapêutico, amparado na realidade. Assim, no exercício constante da evocação do testemunho, da autoconsciência e da responsabilidade que isso me confere perante a vida, uma sã psicoterapia digna-se a oferecer os meios para que o paciente encontre a cura de seus males, de suas enfermidades, o sentido da própria vida, a actualização de suas potências superiores, o segredo por trás da existência e a sã felicidade. Fato é que, raras são as escolas psicoterapêuticas, abordagens e cosmovisões dentro da psicologia aplicada que são capazes de oferecer tais subsídios aos pacientes, seja pela própria limitação do método, seja por erro epistemológico ou por inúmeras outas razões, porém, sobre tal assunto discorrerei num próximo artigo.

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